Voltar às origens

Contado por Benilde
Categoria B

Nasceu na aldeia.

Voltar às origens

Estive até aos 20 anos, casei e fui para Moçambique. Estive lá 5 anos. Regressei por causa dos acontecimentos. Trazia 2 meninas. Uma vinha a fazer 2 anos e outra 4. Já são umas mulheres.

Infância: “muito trabalho e muito sacrifício”, “as terras era tudo amanhado de cima ao fundo, tudo regado”.
Pais trabalhavam só do campo. Por vezes, o pai ia trabalhar à vinha ou à ceifa para o Alentejo. “E trazia dinheirito”. Viviam com muitos sacrifícios, 3 filhos. “O meu avô deu à minha mãe as territas mais ruins, porque também ainda tinha filhos em casa.”
“Naquele tempo havia a candonga do milho, lá para Figueiró, ou para outros lados, cargas de milho para vender, não vendiam aos vizinhos, até o tinham que esconder, aqueles que se sabia que tinham muito, senão vinham-no buscar.”
Candonga - Pessoas que vinham de fora, que compravam para vender ainda mais caro. Negociantes.
Milho era para fazer a broa. Não havia padeiro. Toda a gente tinha forno. Moía-se o milho nos moinhos de água ou iam à Machuca. Os porcos tb comiam a farinha do milho.
O crescente maior: deixava-se um bocadinho do pão, botava-se na salgadeira com umas pedrinhas de sal e deixava-se fermentar. Depois misturava-se com farinha para fazer o pão, que ia a cozer.
A cultura do milho: semear, terras lavradas, gradadas com grade de madeira puxada a bois ou burros, o milho nascia, era sachado, espontado, esfolhado, apanhado e ia para as eiras. Era debulhado com máquinas manuais(o meu pai tinha uma e emprestava aos vizinhos, rodava). Eiradas grandes, com panos, com a ajuda dos vizinhos, metia-se o milho ao sol, erguia-se ao vento, 20 ou 30 alqueires iam para a arca, secos. Dormiam pessoas nas eiras até estar pronto, para evitar furtos pois por vezes iam lá…
Descamisada/ descaroladas: ajudavam-se uns aos outros, à noite, depois do jantar, “era uma festa, naquele tempo!” Conversas: cantar, brincar, trocavam abraços quando encontravam a espiga encarnada, que era o coração. Era uma brincadeira! xicoração aos velhos. histórias: falar da vida; Música: cantigas conhecidas, a cantarolar, as décimas - vida de pessoas, acontecimentos reais- “armavam uma décima”, exemplo:

  • Américo do Vale do Poisado, Pisão
  • Adeus Maria da Conceição
  • Criada no Vale do Vicente
  • Amiga de José Paulino
  • À vista de toda a gente.

(tinha filhos e mulher e andava com esta. O senhor acabou por morrer, num hospital, já não me recordo onde,...Coisas muito bonitas. Mulheres antigas, sabiam tudo!)

Vendiam na Feira folhetos com estas histórias! Quem sabe muito das décimas é a Isilda. Aprendeu com a mãe e com as tias. “Danada para cantar e dançar!”

Brincadeiras: era a trabalhar nas terras, desde a 2.ª classe, pequenita, muito despachada. Brincar no caminho da escola. Eramos muitos a irmos até ao Favacal: 8 ou 9 cachopas e rapazes tb eram muitos. Depois eles foram-se embora para África. Só cá ficou um rapaz, que morreu à pouco tempo na Holanda, para onde foi viver. Ai à missa, outra paródia pelo caminho. Os rapazes mandavam bocas. Vinham de Vai Vaii ver as meninas da Ferraria. Elas riam-se. Ir à vindima, outra brincadeira. Fui 2 anos. Trabalho duro, de sol a sol, na apanha, mas à noite havia baile. Dançavamos em cima das esteiras, onde dormíamos. Era em Santarém. Vale de Santarém, Alpiarça e Almeirim. Agora tem tomates e já não há vinhas.

A ida para Moçambique 

Casou por procuração, como muitas por aqui. Quem foi a servir de noivo era o meu pai. “Casei aqui, na minha capela!” - diz com orgulho. Ainda tem o papel que tirou, certidão de casamento, 13:00 na Capela da Ferraria de São João. O marido estava lá. Namorámos por cartas e por fotografias. Como era? Outros jovens assuntaram-na, na aldeia, a mãe era muito exigente. Não deixava. Sabia que tinha de ir para África com os pais. A irmã e cunhada já estavam lá. Quem se correspondia comigo era empregado da minha irmã, 1º, depois do meu irmão…ia para a tropa. Um dia ele viu lá a minha fotografia, na casa do meu irmão, que lhe disse que eu era a irmã mais nova. Pediu permissão para me escrever e assim foi. Estava a ir para a vindima quando recebi a carta dele e a de outro [que morava ali, marido da Miquelina]. Levei-as na carreira e abri-as lá na vindima. Perguntei à minha irmã o que devia fazer. Ela aconselhou-me: “não vás pelo Jaime, que ainda agora andou com outra. Vai pelo rapaz, que trabalhou aqui, criei-o de pequenino como se fosse meu filho.” Começamos a escrever-nos. Ele era daqui de perto, era de Santiago da Guarda, Ansião, mas não conhecíamos a família. Andou 40 meses na tropa. Depois, foi trabalhar para a minha madrinha, ainda em África, era queria-me deixar as coisas dela e foi passando a ele. “Deixou-me tudo! Para eu me servir. Embora eu levasse o meu enxoval. Ficámos com a casa posta. Ficámos bem.” Trabalhava lá ao balcão, não era pesado (num supermercado).

Voltar a Ferraria de São João

Quando voltámos, custou-nos muito a começar a vida aqui. O meu marido teve que pegar na enxada e cavar a vinha, para termos pão em casa. Tínhamos batatas e milho, mas para outras coisas era preciso dinheiro. Eu trabalhava no campo, o meu marido foi para um patrão, teve sempre o mesmo patrão, 28 anos (oficina e bomba gasolina).

Nunca pensou em sair da aldeia? Houve aí um senhor de Pombal a angariar pessoal para ir para fora. Pedia 10 contos. Andava a “indrominar” as pessoas e ficava com o dinheiro.

Conseguiu dar às suas filhas o que queria para elas? Sim. Não quiseram estudar muito até ao 9.ºano. Depois seguiram para as confecções, para as fábricas daqui, o pai ajudou. Ajudou também a pagar a carta de condução, o casamento…

Sentiu que era aqui que queria viver para sempre? Comparativamente com África, lá gostámos muito mas havia guerra. Era a cidade, os saques. Morreram lá muitos...alguns daqui de perto. Sempre gostei da minha terra. O meu marido também. As miudas também, é como se tivessem aqui nascido. Gosto do sossego. Aqui deitamo-nos na cama descansados, em África tínhamos medo. E lobos? Nunca tive susto nenhum com os meus rebanhos.

Lendas? Muitas histórias...

O que os vizinhos de outras aldeias dizem da Ferraria? Dizem que agora está bonito. “Tomara eu, fizessem isto na minha terra”, eu já tenho ouvisto. [ :) ] . Vem muita gente só para ver! De Miranda [do Corvo]…

Brincadeiras para assustar crianças? (BENILDE E ADILINA, mãe da Arlete) Tocar/ matar/ partir o burro pelo Carnaval. A mocidade levavam os búzios, tocavam muito, era o chamamento para todos, à noite. Depois havia rimas: a do meu pai “Pro Abílio Vaz do pátio, um bocado dentro do prato.” Era uma paródia. Pro pai do Manel: “Pro Serafim do portão, dá-se-lhe um bocado do burro para a tranca do portão”; “Pro Zé da Barroca, dá-se-lhe um bocado para a cremela da porta.” Tb o pedir para as almas do purgatório…[música] uma décima...

à porta vos estou pedindo
pras almas do outro mundo.
se estáis a dormir, acorda
desse sonho tão profundo.

 

a esmola que vós nos dais
não julgais que a comemos.
é para dizes de misse
devoção que nós trazemos.

 

Quem cantava era o “Cana Verde”... Também havia o “Serrar a velha”. Com barulhos de latas e com um serrote. Batiam às portas. E diziam: “serram-se velhas e novas!”; “ai a minha avó, serraram-lhe as pernas!”; “é verdade ou não?”; “É!” e faziam barulho. Quando havia mocidade, 14 ou 15 rapazes. Até tinha medo. Depois deixou...já não há quem faça.

Músicos? Concertina do sr. Manuel Joaquim, que foi para o Brasil; mais do Zé Tareso, que fazia Bailes por fora, aqui na aldeia não. Cerejeiras, Cercal,no Sábado à noite … Passagens de ano: um dia normal...faziamos “velhoses”, sopa mais forte com chouriça da salgadeira, ir à missa beijar o Menino Jesus, era assim. Pôr o madeiro? 1º na nossa casa, mais tarde passou a ser na rua. Fogueira chamada o cepo do Natal. Fogueiras tb pelo Santo António, São João,... Não têm feito. Têm medo dos fogos! [retraida]

Festa da aldeia: sempre muito bonita. O meu marido organizava muitas vezes, com a comissão da capela (sábado, domingo, às vezes até segunda). Dançar até de manhã, no largo. Música, com um tocador, almoço sardinhada ou febras, pão e broa. Só se vendia o vinho. Os maridos faziam um arco de eucalipto em cada porta de casa, de cada mordomo e enfeitavam com papel. Passava uma procissão. Punham-se as cobertas ou colchas à janela e mandavam flores. Faziam dinheiro. Gastávam mas tb ganhavam. Pediam para a Santa: para a Sta da Ferraria, Nossa Senhora de Fátima, pro São Joãozinho. Faziam andores, enfeitados por uma florista, e iam com os Santinhos dar a volta ao lugar. Sto António, S. João, Nossa Sra. de Fátima. O Paulo Guilherme organizou uma vez... Era em Julho/ Agosto… Somos de São João porque havia uma capelita na encosta. Os do Espinhal quiseram levá-lo para o Espinhal. Houve um tempo em que andava o Santo de cá para lá. Roubavam-no e voltava a aparecer. No São João do Deserto, os Santos valiosos que lá estavam também desapareceram todos. Actualmente, estão no Espinhal. Só vão para cima na festa.

Futuro da aldeia? Reformados que venham para cá, de Lisboa. Os nossos filhos, que queiram cá ter casa para a sua reforma, porque gostam muito da sua terra.

Que memória guardam que tenha sido mais marcante aqui? No tempo dos meus avós, o dinheiro vinha da junta de bois, quando a vendiam, não tinham reforma. Viviam do que os filhos lhe davam. Não havia doenças, nem médicos, era raro. Dr. David, em Penela, dos únicos. Morria muita gente com pneumonia. Bebés com meningite. O meu avô morreu aqui, já estava na cama a falar sozinho, estava “variadinho”! Estava a tocar os bois...na cama. [delírio]. Tratava-se de tudo na aldeia, com paninhos… Houve uma história no Vale Grande, o velhinho muito doente pediu ao filho para o abandonar por lá. A da manta, de dividir ao meio com o filho? É outra. Um filho que também foi abandonar o pai e o pai disse-lhe: “Rasga metade desta manta que é para ti. Para quando os teus filhos te vierem trazer e te abandonar aqui, teres esta manta.” Ele pensou e não deixou lá o pai. E disse: “Ponha-se às minhas costas que eu o levo para casa.” Histórias que se contavam nas noites das descamisadas. Muitas!

Músicas

Música da D. Idalina
1ª(religiosa) Bom Jesus ou Anjo do Calvário - parava tudo de ceifar para ouvir.
2ª Pai Nosso pequenino - 5 chagas Nosso Senhor - diz
D. Idalina: -”Não tenho força para trabalhar mas para dar à língua…!”

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